sexta-feira, 17 de março de 2017

A grandeza de se colocar “nos sapatos dos outros”: “Muitas vezes somos escravos do nosso egoísmo.”



 Entrevista com o Papa Francisco.


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Publicamos abaixo a entrevista que o Santo Padre Francisco concedeu ao periódico Scarp de’ tenis, publicação mensal de rua, projeto editorial e social apoiado pela Cáritas Ambrosiana e pela Cáritas Italiana.
A entrevista foi realizada em preparação à visita do papa à diocese de Milão, programada para o dia 25 de março de 2017.
Isso já tinha acontecido com um jornal das villas miserias argentinas, Cárcova News, depois com um jornal de rua holandês de Utrecht, Straatnews. Mas não existe dois sem três. Em vista da próxima visita a Milão, que ocorrerá no sábado, 25 de março de 2017, Francisco concedeu uma longa entrevista a uma publicação mensal dos sem-teto milaneses.
O Scarp de’ tenis é um jornal, mas também um projeto social. Seus protagonistas são os moradores de rua e outras pessoas em situação de dificuldade pessoal ou que sofrem formas de exclusão social. O jornal pretende lhes dar uma ocupação e complementar a sua renda. Mas, em primeiro lugar, pretende acompanhá-los na reconquista da autoestima.Quem realizou a entrevista – tornada pública pelo escritório de imprensa da Diocese de Milão – foi o diretor Stefano Lampertico e Antonio Mininni, antes vendedor e depois histórico responsável pela redação de rua.
Santo Padre, falamos do povo dos invisíveis, dos moradores de rua. Algumas semanas atrás, no início do inverno [europeu] e com a chegada do grande frio, o senhor deu ordens para acolhê-los no Vaticano, para abrir as portas das igrejas. Como o seu apelo foi acolhido?

O apelo do papa foi ouvido por muitas pessoas e por muitas paróquias. Muitos o ouviram. No Vaticano, há duas paróquias, e cada uma delas hospedou uma família síria. Muitas paróquias de Roma abriram as portas para a acolhida, e eu sei que outras, não tendo lugar nas casas paroquiais, coletaram dinheiro para pagar o aluguel para pessoas e famílias necessitadas por um ano inteiro. O objetivo a ser alcançado deve ser o da integração. Por isso, é importante acompanhá-los por um período inicial. Em muitas partes da Itália, muito foi feito. As portas foram abertas em muitas escolas católicas, nos conventos, em tantas outras estruturas. Por isso, eu digo que o apelo foi ouvido. Sei também de muitas pessoas que ofertaram dinheiro para que se pudesse pagar o aluguel para as pessoas sem-teto.
No passado, o mundo inteiro escreveu sobre os sapatos do papa, sapatos de trabalhador e caminhante, e recentemente a mídia ficou surpresa e contou que o papa tinha ido até uma loja para comprar um par de sapatos novos. Por que tanta atenção? Talvez por que hoje é difícil se colocar – como o Scarp de’ tenis convida a fazer – nos sapatos dos outros?
É muito difícil se colocar “nos sapatos dos outros”, porque muitas vezes somos escravos do nosso egoísmo. Em um primeiro nível, podemos dizer que as pessoas preferem pensar nos próprios problemas, sem querer ver o sofrimento e as dificuldades do outro. Mas há outro nível. Colocar-se “nos sapatos dos outros” significa ter uma grande capacidade de compreensão, de entender o momento e as situações difíceis. Dou um exemplo: no momento do luto, dão-se as condolências, participa-se do velório ou da missa, mas são realmente poucos aqueles que “se colocam nos sapatos” daquele viúvo ou daquela viúva ou daquele órfão. Certamente, não é fácil. Sente-se dor, mas, depois, tudo termina ali. Se pensarmos, além disso, nas existências que muitas vezes são marcadas pela solidão, então colocar-se “nos sapatos dos outros” significa serviço, humildade, magnanimidade, que é também a expressão de uma necessidade. Eu preciso que além se coloque “nos meus sapatos”. Porque todos precisamos de compreensão, de companhia e de alguns conselhos. Quantas vezes eu encontrei pessoas que, depois de ter buscado conforto em um cristão, seja ele leigo, padre, freira, bispo, me diz: “Sim, ele me ouviu, mas não me entendeu”. Entender significa “colocar-se nos sapatos dos outros”. E não é fácil. Muitas vezes, para suprir essa falta de grandeza, de riqueza e de humanidade, perde-se nas palavras. Fala-se. Aconselha-se. Mas, quando só há as palavras ou palavras demais, não há essa “grandeza” de se “colocar nos sapatos dos outros”.
Santidade, quando o senhor encontra um sem-teto, qual é a primeira coisa que lhe diz?
“Bom dia.” “Como vai?” Algumas vezes, trocamos poucas palavras, outras vezes entramos em relação e ouvimos histórias interessantes: “Estudei em um colégio, havia um padre muito bom…”. Alguns poderiam dizer: “Mas o que me interessa?”. As pessoas que vivem na rua entendem logo quando há o verdadeiro interesse por parte parte da outra pessoa ou quando há, não quero dizer aquele sentimento de compaixão, mas certamente de pena. Pode-se ver um sem-teto e olhá-lo como uma pessoa ou como se fosse um cachorro. E eles percebem esse modo diferente de olhar.
No Vaticano, é famosa a história de uma pessoa sem-teto, de origem polonesa, que geralmente ficava na Piazza Risorgimento, em Roma, não falava com ninguém, nem com os voluntários da Cáritas que, à noite, levavam-lhe uma refeição quente. Só depois de muito tempo é que conseguiram fazer com que ela contasse a sua história: “Sou padre, conheço bem o papa de vocês, estudamos juntos no seminário”. A história chegou até São João Paulo II que, tendo ouvido o nome, confirmou que estivera com ele no seminário e quis encontrá-lo. Eles se abraçaram depois de 40 anos e, no fim de uma audiência, o papa pediu para ser confessado pelo sacerdote que tinha sido seu companheiro. “Agora, porém, é a sua vez”, disse-lhe o papa. E o companheiro de seminário foi confessado pelo papa. Graças ao gesto de um voluntário, de uma refeição quente, de algumas palavras de conforto, de um olhar de bondade, essa pessoa pôde se reerguer e começar uma vida normal que o levou a se tornar capelão de um hospital. O papa o havia ajudado. Certamente, esse é um milagre, mas é também um exemplo para dizer que as pessoas sem-teto têm uma grande dignidade.
No arcebispado, em Buenos Aires, debaixo de uma marquise, entre as grades e a calçada, moravam uma família e um casal. Ali, eu os encontrava todas as manhãs quando saía. Eu os cumprimentava e trocava sempre duas palavras com eles. Nunca pensei em expulsá-los dali. Mas alguns me diziam: “Eles sujam a Cúria”, mas a sujeira está dentro. Eu acho que é preciso falar com as pessoas com grande humildade, não como se tivessem que nos pagar uma dívida e não tratá-las como se fossem cães.
Muitos se perguntam se é justo dar esmola às pessoas que pedem ajuda nas ruas. O que o senhor responde?
Existem muitos argumentos para se justificar quando não se dá esmola. “Mas como! Eu dou dinheiro, e depois ele gasta para beber um copo de vinho?”. Um copo de vinho é a única felicidade que ele tem na vida. Está bem assim. Pergunte-se, ao contrário, o que você faz às escondidas. Que “felicidade” você busca às escondidas? Ou, ao contrário dele, você é mais sortudo, tem uma casa, uma esposa, filhos. O que o leva a dizer: “Cuidem vocês dele”? Uma ajuda é sempre justa. É claro, não é bom jogar somente uns trocados ao pobre. É importante o gesto, ajudar quem pede olhando-o nos olhos e tocando as suas mãos. Jogar o dinheiro e não olhar nos olhos não são um gesto cristão. Como se pode educar à esmola?
Eu conto uma anedota de uma senhora que eu conheci em Buenos Aires, mãe de cinco filhos (naquele tempo, ela tinha três). O pai estava trabalhando, e eles estavam almoçando. Ouvem bater na porta. O filho mais velho vai abrir: “Mamãe, tem um homem que pede comida. O que fazemos?”. Todos os três, a menor tinha quatro anos, estavam comendo um bife à milanesa. A mãe lhes disse: “Bem, cortemos a metade do nosso bife”. “Não, mamãe, tem outro bife”, disse a menina. “É para o papai, para esta noite. Se devemos doar, devemos dar o nosso bife.” Com poucas palavras simples, eles aprenderam que se deve doar daquilo que é próprio, daquilo de que você nunca gostaria de se separar. Duas semanas depois, a mesma senhora foi à cidade para resolver algumas questões e foi obrigada a deixar as crianças em casa. Elas tinham o tema de casa para fazer, e deixou-lhes o lanche já pronto. Quando voltou, encontrou os três filhos na companhia de um sem-teto à mesa, comendo o lanche. Elas tinham aprendido muito bem e muito rápido. Certamente, tinha lhes faltado um pouco de prudência… Ensinar à caridade não é descarregar as próprias culpas, mas é tocar, olhar para uma miséria que eu tenho dentro e que o Senhor compreende e salva. Porque todos nós temos misérias dentro.
Várias vezes, o papa se inclinou em defesa dos migrantes, convidando à acolhida e à caridade. Milão, nesse sentido, é uma capital da acolhida. Mas muitos perguntam se realmente é preciso acolher a todos, indistintamente, ou se é necessário pôr limites.
Aqueles que chegam à Europa escapam da guerra ou da fome. E nós somos culpados, de algum modo, porque exploramos as suas terras, mas não fazemos nenhum tipo de investimento para que eles possam ter benefícios. Eles têm o direito de emigrar e têm o direito de serem acolhidos e ajudados. Isso, porém, deve ser feito com aquela virtude cristã que é a virtude que deveria ser própria dos governantes, isto é, a prudência. O que significa? Significa acolher a todos aqueles que “podem” ser acolhidos. E isso no que diz respeito aos números. Mas é igualmente importante uma reflexão sobre “como” acolher. Porque acolher significa integrar. Isso é o mais difícil, porque, se os migrantes não são integrados, eles são “guetizados”. Trago sempre na memória do episódio de Zaventem [o atentado no aeroporto de Bruxelas no dia 22 de março de 2016]. Aqueles jovens eram belgas, filhos de migrantes, mas moravam em um bairro que era um gueto.
E o que significa integrar? Também neste caso dou um exemplo: de Lesbos, vieram comigo para a Itália 13 pessoas. No segundo dia de permanência, graças à Comunidade de Santo Egídio, as crianças já frequentavam as escolas. Depois, em pouco tempo, encontraram onde se alojar, os adultos se esforçaram para frequentar cursos para aprender a língua italiana e para procurar algum trabalho. Certamente, para as crianças, é mais fácil: elas vão à escola e, em poucos meses, já sabem falar o italiano melhor do que eu. Os homens buscaram um trabalho e o encontraram. Integrar, então, significa entrar na vida do país, respeitar a lei do país, respeitar a cultura do país, mas também fazer respeitar a própria cultura e as próprias riquezas culturais. A integração é um trabalho muito difícil.
Nos tempos das ditaduras militares em Buenos Aires, olhávamos para a Suécia como um exemplo positivo. Os suecos, hoje, são nove milhões, mas, destes, 890 mil são novos suecos, isto é, migrantes ou filhos de migrantes integrados. A ministra da Cultura, Alice Bah Kuhnke, é filha de uma mulher sueca e de um homem proveniente do Gâmbia. Este é um belo exemplo de integração. Certamente, agora, também na Suécia encontram-se em dificuldades: eles têm muitos pedidos e estão tentando entender o que fazer, porque não tem lugar para todos. Receber, acolher, consolar e logo integrar. O que falta é justamente a integração. Cada país, então, deve ver qual número é capaz de acolher. Não se pode acolher se não há possibilidade de integração.
Na história da sua família, há a travessia do oceano por parte do seu avô e da sua avó, com o seu pai. Como é crescer como filho de imigrantes? O senhor já se sentiu um pouco desenraizado?
Nunca me senti desenraizado. Na Argentina, somos todos migrantes. Por isso, lá, o diálogo inter-religioso é a norma. Na escola, havia judeus que chegavam na maior parte da Rússia e muçulmanos sírios e libaneses, ou turcos com o passaporte do Império Otomano. Havia muita fraternidade. No país, há um número limitado de indígenas. A maioria da população é de origem italiana, espanhola, polonesa, médio-oriental, russa, alemã, croata, eslovena. Nos anos entre os dois séculos anteriores, o fenômeno migratório foi enorme. O meu pai tinha cerca de 20 anos quando chegou à Argentina e trabalhava no Banco da Itália, e se casou lá.
O que o senhor mais sente falta de Buenos Aires? Dos amigos, das visitas às villas miseria, do futebol?
Há apenas uma coisa de que eu sinto muito falta: a possibilidade de sair e andar pela rua. Eu gosto de visitar as paróquias e encontrar as pessoas. Não tenho uma nostalgia em particular. Vou lhes contar outra anedota: os meus avós e o meu pai deveriam ter partido no fim de 1928, tinham o bilhete para o navio “Princesa Mafalda”, navio que afundou nas costas do Brasil. Mas não conseguiram vender em tempo aquilo que possuíam e, assim, mudaram o bilhete e embarcaram no “Giulio Cesare” no dia 1º de fevereiro de 1929. Por isso, estou aqui.
Milão está pronta para acolher o senhor no fim do mês de março. Comecemos pelas organizações de caridade, pelas associações de voluntariado, por aqueles que se preocupam em dar aos sem-teto um lugar para passar a noite, comida, assistência sanitária, oportunidades de resgate. Em Milão, orgulhamo-nos de conseguir fazer isso, e muito bem. É suficiente? Quais são as necessidades daqueles que acabaram nas ruas?
Assim como para os migrantes, muito simplesmente essas pessoas precisam da mesma coisa: ou seja, integração. Certamente, não é simples integrar uma pessoa que não tem casa, porque cada uma delas tem uma história particular. Por isso, é preciso se aproximar de cada um delas, encontrar o modo de ajudá-las e dar-lhes uma mão.
O senhor repete muitas vezes que os pobres podem mudar o mundo. Mas é difícil que exista solidariedade onde existe pobreza e miséria, como nas periferias das cidades. O que o senhor acha?
Também aqui eu relato a minha experiência de Buenos Aires. Nas favelas, há mais solidariedade do que nos bairros do centro. Nas villas miseria, há muitos problemas, mas muitas vezes os pobres são os mais solidários entre si, porque sentem que precisam uns dos outros. Eu encontrei mais egoísmo em outros bairros, não quero dizer ricos, porque seria qualificar desqualificando, mas a solidariedade que se vê nos bairros pobres e nas favelas não se vê em outros lugares, embora a vida ali seja mais complicada e difícil. Nas favelas, por exemplo, vê-se mais a droga, mas só porque nos outros bairros ela está mais “encoberta” e é usada com luvas brancas.
Recentemente, procuramos ler a cidade de Milão de forma diferente, partindo dos últimos e das ruas, e com os olhos das pessoas sem-teto que frequentam um centro diurno da Cáritas Ambrosiana. Com elas, publicamos um guia da cidade, vista a partir da rua, do ponto de vista de quem a vive todos os dias. Santo Padre, o que o senhor conhece da cidade e o que espera da sua iminente visita?
Eu não conheço Milão. Estive lá apenas uma vez, por poucas horas, nos distantes anos 1970. Eu tinha algumas horas livres antes de pegar um trem para Turim e aproveitei para fazer uma breve visita à catedral. Em outra ocasião, com a minha família, estive um domingo para almoçar na casa de uma prima que morava em Cassina de’ Pecchi. Eu não conheço Milão, mas tenho um grande desejo. Espero encontrar muita gente. Esta é a minha maior expectativa: sim, espero encontrar muita gente.
A entrevista foi publicada no jornal L’Osservatore Romano, 28-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

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