– Isso me pegou na contramão! – diz o impaciente contrariado.
Tem razão. Aquilo foi-lhe de encontro e o abalroou, chocando-se com os seus desejos, com a sua tranquilidade ou com o seu bem-estar.
Mas, ao escutarmos essa sua queixa, seria lógico que lhe perguntássemos:
– E… qual é a sua “mão”?
Em matéria de paciência, talvez seja esta a pergunta fundamental, a que melhor nos pode conduzir à verdadeira causa das nossas impaciências.
Todos temos mão e contramão na vida. A mão é o objetivo para o qual se orientam principalmente os nossos desejos, as nossas lutas, as nossas ambições, as nossas esperanças de realização e de felicidade. Essa orientação fundamental é a autêntica diretriz do nosso coração, das nossas reflexões, dos nossos devaneios e dos nossos empenhos.
Constatamos esta realidade em nós e nos outros. E, ao mesmo tempo, verificamos que essa orientação fundamental varia de um homem para outro. Mais ainda, que a mão dessa direção de vida pode ter sentidos contrários, conforme as pessoas. Um professor universitário, entusiasmado com as suas pesquisas, não pode viver sem os seus livros e o seu estudo, chegando a sacrificar indevidamente a esse ideal profissional até a saúde e a família. Pelo contrário, um estudante vadio não consegue viver nem conviver com os livros, com o estudo.
O contraste é ainda mais marcante se entramos a fundo nas questões em que se enraízam o sentido da vida. Para um santo, um mundo sem Deus seria uma noite horrenda, a quintessência do inferno. Para um agnóstico, Deus é perfeitamente dispensável, e todas as coisas estão niveladas pela mesma indiferença.
Se procurarmos meditar na vida, se conseguirmos lucidez suficiente para pensá-la em profundidade, perceberemos que todas as atitudes básicas, todas as orientações “de fundo”, todas as “mãos”, se reduzem, em último termo, a duas, que podem ser enunciadas em duas palavras: obter e edificar.
“Dá-me a parte que me corresponde”
É comum perguntar a uma criança: – “O que você quer ser quando crescer?” A resposta pode ir desde “engenheiro igual ao papai” até “bombeiro” ou “jogador da Seleção brasileira”.
Menos comum é perguntar: – “O que você quer fazer quando for grande?” Possivelmente, a resposta será: “Estudar, namorar, casar”… Mas outras crianças ficarão desnorteadas perante uma pergunta dessas. Elas sabem bem qual é a imagem ideal de si mesmas em seus “sonhos”, mas custa-lhes considerar a vida como tarefa.
Ora, o que é totalmente incomum é perguntar: – “O que você quer dar, o que você gostaria de dar quando for grande?” E, no entanto, esta é a única pergunta que deveria fazer realmente sentido para um ser humano.
A atitude de muitos perante a vida é radicalmente egoísta. O mundo é “para mim”, a vida é “para mim”. Mesmo os amores são vistos como um meio de obter o benefício da realização pessoal. É por isso que muitos pensam em marido ou mulher só enquanto “gostarmos”, ou seja, enquanto o egoísmo receber vantagens dessa união. Basta que comecem os sacrifícios, e haverá despedida, partirão para outra. E os filhos? Às vezes, nem sequer se pensa neles, e se espera tanto para tê-los que – com perdão do leitor – a decisão de deixar descendência acaba por ser tomada depois da menopausa.
O egoísta, aquele que só quer usufruir da vida, que quer “realizar-se” colocando o seu “eu” como meta e centro do mundo, esse só sabe repetir as palavras que Cristo põe na boca do filho pródigo: “Pai, dá-me a parte que me toca” (cf. Lc 15, 12).
O egoísta é monótono. Dirige-se a Deus e aos outros, dizendo sempre: “Dá-me!” É um homem que vive para pegar, para tomar, para armazenar, para desfrutar, em suma, para obter…
O egoísta parece ter, dentro do coração, um cachorrinho obsessivo, que dia e noite late sem parar, com voz esganiçada e estridente: Eu! Eu! Eu! E, quando a voz afina: Mim! Mim! Mim!
Só que o mundo está repleto de outros cachorros iguais e lhe responde com o eco das suas próprias palavras, de modo que por toda a parte se lançam contra ele os mesmos ganidos, vindos de bocas alheias: Eu! Eu! Eu! Certamente, o mundo não nos faz a toda hora reverências nem nos estende tapetes vermelhos diante dos pés.
Na contramão dos homens e de Deus
Desse entrechoque de egoísmos, logicamente, hão de sair faíscas. Um encontrão! Uma cotovelada! Um “chega pra lá!” Um “primeiro eu!” Um “espere um pouco e você vai ver!” A colisão de egoísmos é inevitável, pois o meu egoísmo sempre vai na contramão do outro, e é fisicamente impossível colocar dois centros diferentes no mesmo círculo ou dois umbigos do mundo exatamente no mesmo ponto.
Estamos vendo? Parece coisa clara que a maior parte das nossas impaciências são apenas egoísmos contrariados. Se as fôssemos examinando uma após outra, numa espécie de microscópio espiritual, acabaríamos verificando que, nelas, nas impaciências, estão todas as cores de que o egoísmo humano se tinge, quer seja a cor orgulhosa, quer a comodista, a hedonista, a sensual ou a invejosa… Todas aquelas cores do espectro em que a luz triste do egoísmo se dispersa.
Alguém já disse – sem dúvida com exagerada dureza – que o mundo é um chiqueiro de egoísmos, onde estes, em recinto fechado, se mordem e dilaceram. Algo parecido com isso é o que não tardará a descobrir, por experiência própria, quem adotar como filosofia de conduta “gozar a vida”, “passar o melhor possível”, “conseguir o máximo”, “levar vantagem em tudo”.
O pior, porém, não é que isso tudo não passe de uma ilusão trágica, decepcionante, num mundo que não nos abre alas como ao seu “príncipe”. O pior é que o egoísta, por princípio, anda sempre na contramão de Deus, e isso é muito mais sério e perigoso.
Deus só tem uma mão: o Amor. O egoísmo trafega em sentido contrário. É significativo que uma condição prévia para andar na mão de Deus e para aprender o amor cristão seja esta: Quem quiser resguardar a sua vida – diz Cristo – a perderá; mas quem perder a sua vida por amor de mim [quem souber sacrificá-la por amor], a salvará (cf. Mt 16, 25 e Mc 8, 35). A mão de Deus é o Amor. Sair dela é atravessar-se na estrada, e aí todas as colisões são inevitáveis.
O egoísmo colide com tudo e, além disso, tem a triste faculdade de tornar negativas todas as coisas. O egoísta, por exemplo, em vez de valer-se do temperamento da esposa para saber “como” deve amá-la, serve-se disso como motivo para humilhá-la e ofendê-la. Não pensa: “Ela é lenta, vou estimulá-la, vou ajudá-la”. Pensa: “Ela é lenta; atrasa tudo! Não julgava que fosse tão lerda quando casei! Isto não pode continuar!” São duas maneiras opostas de reagir perante uma mesma situação. Duas maneiras que se podem dar em todas as situações.
As mais belas coisas murcham nas mãos do egoísta. Vale a pena repisar bem a afirmação de que o nosso egoísmo é a causa fundamental dos nossos aborrecimentos. Assim como o lendário Rei Midas tinha o poder de transformar em ouro tudo o que tocava, o egoísta tem a virtude de transformar em pontas, em cacos de vidro, em navalhas e espinhos, tudo o que não se curva aos seus desejos.
O que a vida espera de nós
No relato autobiográfico intitulado Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração, o psiquiatra Viktor Frankl relata o ambiente de profundo abatimento que se ia apossando do espírito de seus companheiros de barracão, no campo de concentração nazista em que se encontravam, à medida que as expectativas de libertação se afunilavam e o futuro aparecia cada vez mais sombrio.
Era comum ouvir-se dizer: – “Eu já não espero mais nada da vida”.
“Que resposta podemos dar a essas palavras?” – perguntava-se Frankl. E a seguir, com a vibração de quem fez uma descoberta, explica a nova luz que se acendeu nele e que procurou transmitir aos outros:
“Do que realmente precisamos é de uma mudança radical da nossa atitude perante a vida. Temos que aprender nós mesmos, e depois ensinar aos desesperados, que na verdade não é importante o que nós esperamos da vida; importante é o que a vida espera de nós”.
Numa noite em que um corte de luz mergulhou os prisioneiros numa depressão ainda maior, Frankl, embora gelado e sonolento, irritado e cansado, sentiu que era preciso fazer alguma coisa para infundir ânimo àqueles pobres farrapos humanos que já desistiam de viver. Levantou-se, então, e falou. Expôs com veemente ardor a sua descoberta. E essa ideia de que a vida tem um sentido infinitamente superior ao de simplesmente satisfazer desejos, obter coisas, passar bem, gozar de boa saúde, invadiu, como um clarão de esperança, aqueles corações agoniados.
Entenderam que Deus, a esposa, os filhos, os amigos, o mundo esperavam deles (deles que pareciam animais acuados, prestes a serem levados ao matadouro) um testemunho – na vida ou na morte – de que o ser humano foi feito para algo muito maior do que comer, beber, gozar, rir na fortuna e chorar na adversidade. Deus e os outros esperavam algo que só cada um deles, com grandeza de alma, podia dar. Deus e o mundo “precisavam” de cada um deles!
Esta concepção da vida, como é óbvio, opõe-se frontalmente à atitude egoísta acima descrita. É a outra possível vertente da nossa existência. A única verdadeira. A vida só pode ser encarada como uma missão a cumprir, que nos é confiada por Deus, como uma edificação de que somos responsáveis e de que outros dependem. Não vivemos, em suma, para obter; vivemos para edificar.
Adaptação de um trecho do livro de F. Faus, A paciência, 3ª ed., Quadrante 2015
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